sexta-feira, setembro 26, 2008

MEMORÁVEL DESCRIÇÃO DO DIA EM QUE UM RESPONSÁVEL TRABALHADOR QUE LEVANTA TODOS OS DIAS MUITO CEDO A FIM DE IR AO SERVIÇO TEVE VONTADE DE NÃO SE LEVANTAR

Acordou e sentiu que seria aquele mais um dia comum em sua vidinha banal. Era demasiado cedo, escuro ainda, imaginem, nem o Sol que é o Sol havia ainda nascido direito, sendo que é ele quem deveria nos despertar por ser o único que sempre acorda e se levanta mais ou menos à mesma hora. Sua vontade era não levantar. Queria ficar ali, simplesmente  ficar, não havia qualquer atrativo naquela velha cama, infelizmente nenhuma companhia senão os cupins na madeira barulhenta e os ácaros no velho colchão, pulgas não, que deus nos livre a todos porque é um bicho que de um se passa a milhão, nem mulher, o que era pena mas a vida era assim. Enfim, nem muito confortável era a cama, mas ainda era uma cama e a idéia de dormir se fazia sentir como mais do que simplesmente agradável, mas inegável. Tudo parecia conspirar para isso: era uma manhã dessas confortáveis, que debaixo das cobertas fica mais do que perfeita, o corpo ainda cansado e preguiçoso, os ácaros também dormiam, acho, e os cupins, nem barulho a cama fazia, os vizinhos ainda não haviam se levantado e nem na rua passava ninguém que o pudesse incomodar, nem o Sol se levantara ainda, como já se disse, no fim das contas apenas o rádio relógio que ainda gritava seu urro rouco, ao mesmo tempo intermitente e constante, uh uh uh uh uh uh, sem parar, ah bons eram os tempos dos despertadores de corda, uma hora lhes acabava a mesma e eles se calavam enfim.
Tinha poucos instantes para decidir. Levantar-se ou não? e isso lá era pergunta que se faça? Afinal de contas era trabalhador e tinha responsabilidades, não muitas, nem grandes, nem com ninguém a não ser si mesmo, afinal, seu ofício nem era tão urgente assim que fosse prejudicar alguém além do patrão, e mesmo esse só um pouco. Nem o Sol se levantara! Disse para si mesmo que ninguém deveria ter de levantar antes do Sol, ninguém, e se lembrou no ato das pessoas com quem cruzava diariamente ainda antes de este último ter nascido, das pessoas com quem, por força das rotinas comuns, compartilhava o vislumbre da alvorada, e sentiu-se meio que responsável para com elas a se levantar. Mas será que nenhuma daquelas pessoas sentia vontade de dormir um pouco mais? Alguém precisava tomar uma atitude! Desligar o despertador, puxar as cobertas sobre as orelhas, afundar o nariz no travesseiro e dormir...
Já começava a cochilar novamente quando o rádio relógio voltou a gritar, exercendo a moderníssima e brilhante função que nos dá mais cinco ou dez minutos de sono, depende do modelo do aparelho, ao se apertar um botão. Parecia dizer "acorde, acorde, levante ou me desligue, mas antes decida", pois é, o seu corpo já o obrigava a dormir e nem terminara de se decidir racionalmente se devia ou não acordar, aliás, acordar, não, levantar da cama, ou melhor, terminar de acordar.
Enfim, por que levantar? Para trabalhar, é claro, aliás, levantar agora para se lavar comer vestir sair e pegar a condução, a primeira de três, três ônibus, enfim, é trajeto talvez não tão longo quanto demorado, e só depois, então com o traseiro já todo dolorido de viajar sentado, ou com dor nas pernas e braços de viajar em pé, só depois picar o cartão de ponto e começar a trabalhar. E para que trabalhar? Para se sustentar, para ganhar o dinheiro, para pagar a comida, o aluguel, as contas d'água, telefone, força, as bebidas, as sinucas, o vigia noturno, as roupas, os livros, revistas, cedês, a pensão do filho criado pela ex-mulher, os remédios, seus e de seu pai, já velhinho, enfim, trabalhar para sustentar cada dia comum de sua vidinha banal. Trabalhar para sustentar cada dia comum, incomum, excitante ou entediante de sua vidinha banal, e da do patrão. E o Sol dormindo, e a cama chamando, "venha, venha, venha"... Muitas vezes teve de desligar a brilhante função de cinco ou dez minutos mais a serem dormidos antes de se decidir a levantar. Muitas vezes, mais de seis. Pelas minhas contas, teve um atraso entre meia e uma hora, talvez mais, até que se decidiu a levantar. Já o Sol ameaçava acordar, já os ônibus rodavam, já não tinha tempo de comer, lavara-se mais ou menos, com muita pressa, vestira-se então mais apressado ainda, saiu com as calças às mãos, ainda fechando o cinto, a camisa vazando por cima da cintura, uma mancha de café na manga, um pão velho duro amanhecido enfiado na boca, olhando o relógio no pulso, rezando pela desgraça de tantas pessoas para que se atrasasse o coletivo com todas elas dentro de forma que pudesse ele, o único que tivera suas dúvidas ao acordar, chegar a tempo no trabalho. A tempo de quê? De trabalhar, para sustentar cada dia comum de sua vidinha banal.
É lógico que acabou se atrasando.

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