domingo, dezembro 31, 2006

Se é pra falar de Saddam...

Saddam & o cadafalso

Vamos falar de Sadam então!

Eu tive um cachorro quando criança. Seu nome era Scooby. Não falava, e, como não falava, não chegava a ser engraçado como o da televisão. Mas para mim era um bom cachorro.
Como o peguei ainda filhote, ensinei-lhe truques bobos, tais como deitar e sentar. Mas eu queria mais dele. Queria que ele rolasse, pedisse comida, me desse a pata todas as manhãs, pegasse a revista, que era muito grande para sua pequena boca, mas nós daríamos um jeito. Comecei a treiná-lo incessantemente e parei de achá-lo uma graça. Só lhe dava comida quando fazia o que eu lhe pedia. Scooby não seria um cachorro vira-latas qualquer, ele seria um cachorro vira-latas treinado.
Um dia, Scooby cansado e meio de saco cheio, achou uma fresta no portão e foi passear. Viu tantos cães malandros, cadelas assanhadas e outros velhos e sábios que sentiu vergonha de si. Precisaria acabar com aquilo agora. Não fugiu, voltou para casa.
Voltou para casa, e quando o vi, descarreguei a raiva. Costumava fazer isso com ele, pois não reclamava. Ouviu calmamente meus gritos e aguentou minhas palmadas como o filho de um lord. Depois de tudo, virou-se para mim e me mordeu.
Não rosnou, não deu sinal de raiva ou descontentamento, simplesmente me mordeu. Fez sangrar tanto meu fino braço, que meu pai não pensou duas vezes : levou-o para o meio do mato e deu-lhe um tiro de carabina na cabeça.
Scooby foi um bom cão quando precisei.

Falar no Saddam?

Saddam morreu porque era um homem mau, feio, cara de mamão; tinha um horrível bigode muçulmano e uma minoria fanática que o seguia, e promoveu limpezas étnicas em seu país com financiamento provavelmente americano: o seu erro foi fazê-las em cima de seus poços de petróleo e no século XX, tivesse exterminado os gentios logo no começo ou os selvagens lá pela expansão e seria louvável, teria criado o (imaginem!) iraquian way of life, mas é claro que ele não teve essa sorte.

Foi amigo de Reagan, eu acho, quando se defendeu do Irã, que por acaso é um dos novos inimigos da liberdade americana e também só por acaso está sobre poços de petróleo, os quais seriam muito mais se tivesse engolido o Iraque anos antes; mas depois, quando quis tornar o Kuwait (com seus poçoinhos de petróleo) uma província iraquiana, brigou com o Bush, que, dizem, venceu, mas não o matou, e aí a vingança ficou para o filho, que o pegou já que achou que ele andava produzindo armas de destruição em massa e era aliado do Osama; o jovem Bush, então, bombardeou a superfície de todos aqueles poços com suas armas de destruição em massa - a diferença é que nas americanas eles escrevem recados ou dão nomes engraçados como Little Boy ou Fat Man. É que o Saddam nunca tratou bem as suas armas de destruição em massa, preferindo desperdiçá-las sobre vilarejos curdos a entregá-las às comissões da ONU.

Foi aí que pegaram o Saddam. Feio, barbudo, escondido numa toca. Defendeu-se com o Alcorão na mão, orgulhoso, pose de imperador, mais firme do que o Bush dizendo que vai acabar com o terror. E não é quanse acabou mesmo, primeiro destruindo vilarejos afegãos, ainda bem que descobriu logo que era o Saddam por trás, aí foi só enforcá-lo que tudo se resolveria, os atentados já eram esperados, o importante é que agora o Iraque é livre e tem um governo democrático.
Saddam morreu! Longa vida a Saddam!

Agora, parodiando um velho amigo empirista:
"Até onde eu sei, essa gente nem existe!"



Mas vocês falaram de papa, de deus e de católicos e eles não tiveram é nada a ver com isso.

Então vamos falar no Saddam

Saddam não está mais entre nós. -Será que trigres e traças devem ficar tristes?
Perdemos grandes nomes no final desse ano: Saddam, Pinochet e Fidel. (Há quem diga que este último não está com câncer e eu me chamaria Alice e viveria no País das Maravilhas se isso fosse verdade; e se não está morto, está quase lá, mais alguns passos e bate as botas; parodiando o nosso "macho que é macho", digo: ditador que é ditador não fala que tá doente nem avisa que morreu!)
Pois bem, voltando ao Saddam, vamos falar do Papa. Esse sim. Exemplo de homem da fé. Até bem pouco tempo atrás era nazista ou, ao menos, simpatizante da "causa". E quem diria, pediu para que o Sá não fosse para a forca. Que beleza! Porque será que a Vossa Excelência (oclumência, eminência ou a merda que for) não pediu pela vida de milhares de iraquianos, jordanianos, israelenses e porque não brasileiros? Filhos do mesmo Deus de Saddam, do mesmo Deus de Bush, do mesmo Deus do Papa.
É por isso que eu fico p... com a Igreja.
O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Mas o homem, veio do macaco. Então, Deus é um Macaco?
Boa sorte Saddam. O Papa está rezando por você. Mas nunca o fará por mim. É que não matei milhares de pessoas. Talvez deva começar. Promessas para 2007.

sábado, dezembro 30, 2006

A morte não é o fim nem a solução

Morrer não muda nada. Não corrige nada. Quem vive, vive. Quem morre, morre e isso continua não mudando nada. Se não morrem mais " a mando" desse, morrerão "a mando" daquele, então não muda nada.
Mas se formos católicos ou religiosos no geral, então morreram todos "a mando" Desse, assim facilmente temos a solução: "Matem deus".
Pecado? Heresia. Mas não podemos mata-Lo, então deixem viver e deixem morrer, mas ainda assim não muda nada.

"Muitos que merecem viver morrem. Você pode dar-lhes a vida? Então não seja ávido em julgar e condenar alguém à morte..."

A Morte não é o fim




















Elvis foi uma pessoa conhecida e seus fãs eram inspirados por suas atitudes e roupas. Ele era cantor e compositor e até hoje, às vésperas dos 30 anos de sua morte, muitas pessoas o veneram, cantam suas músicas e imitam suas atitudes. Poucos sabem que ele sempre teve medo do palco e do público. Acreditam até que ele não morreu, mas isso não faz muita diferença.
Saddam foi uma pessoa conhecida.
Existem certos atos que exigem paixão, coragem, público e voz. Cantar não é o único.

Bye bye Saddam

imagem retirada daqui

sexta-feira, dezembro 29, 2006

Perde quem fica zangado primeiro

“Assim, tanto sobre o amor como sobre a guerra, direi de boa vontade aquilo que consigo imaginar: a arte de escrever histórias consiste em saber extrair daquele nada que se entendeu da vida todo o resto; mas, concluída a página, retoma-se a vida, e nos damos conta de que aquilo que sabíamos é realmente nada.”
(Italo Calvino, em O Cavaleiro Inexistente)

Só com humanos

[Ela, uma mulher ácida, sofrida, que lidera bêbados vencendo-os em disputas de bar. Ele, uma zona de combate ambulante, um homem duro, amargo, combatente do crime]

_ Olá, gatão! Quer me pagar um drinque?
_ Hoje não.
_ Vamos, marinheiro, sei que quer me perguntar alguma coisa. Vamos, talvez você se dê bem.
_ Só com humanos.

(Dirty Harry, em Impacto Fulminante:1983)

quinta-feira, dezembro 28, 2006

Apontamentos

Apontei os lápis do estojo. Meu último texto precisou de muitas pontas esfarelando no papel e quase não tomei conta disso. Dos traços, um desânimo ao terminar a única página me fez pensar que esses tracejados seriam os últimos no caderno de artística. Toda imprecisão estranha balançou as minhas extremidades, mas não seria bem uma tristeza, o que apresentaria mais nítido e simples para desaparecer. Quando os sentimentos já não transmitem sentidos e flutuam como fantasmas, os pés não encontram o chão, as mãos tocam desesperadamente a atmosfera e os olhos, os olhos não são mais do que vidros, como Pessoa na pessoa de Caeiro, “rindo como quem tem chorado muito, quase alegre como quem se cansa de estar triste”. Os sonhos de uma traça são lentos e atravessam o livro na corrosão, das páginas que correm dentro de um inseto ou dentro do nada, quando quem aponta o lápis como apontador.

Em suma, o problema era ela.

"As coisas andavam complicadas com Sandra: aquela vez se dera conta de que a história me prendia demais, que a vida a dois se havia tornado bastante tensa. Devíamo-nos separar? Então separemo-nos. Não, espera, vamos discutir o assunto. Não, assim não podemos continuar. Em suma, o problema era Sandra."
(Jacopo Belbo, em ECO, U. O Pêndulo de Foucault, 1988)

Minha Alegria


A minha alegria foi viajar pra Puta Que Pariu e sequer deixou recado. Um dia ela descobriu que havia internet lá e resolveu me dizer do amor que tinha. Queria mandá-la de novo ao lugar que foi, mas já estava lá e não adiantou muito.
Na verdade não a mandei de novo porque o amor que me tinha era recíproco. Tão recíproco era, que resolvi negar-lhe o amor que tinha. Minha alegria estava tão longe e eu nem conseguia esquecê-la porque vinha me lembrar de sua existência na internet. Foi por isso que lhe neguei o amor e a fiz chorar com tanto ardor que até me arrependi.
Fiz o que fiz porque era preciso. Minha alegria poderia ser a alegria de outro alguém mais perto de si. Alegria virtual não funciona. Você desliga o computador e fica puto da vida com a vida de novo. Optei, portanto, pela tristeza absoluta. E, se optei, ela já deixa de ser tristeza e vira melancolia.
O plano do imbecil funcionou tão bem que quando a minha alegria resolveu voltar lá da Puta Que Pariu, se esqueceu tão completamente de minha existência que tive de lembrá-la novamente. Minha alegria já não me pertencia mais. Era uma alegria solta, procurando outro dono qualquer, que não lhe negue o amor.
No meu caso, a triste melancolia veio, portanto, da ausência de alegria, que se foi sem avisar, quis voltar atrás, mas já era tarde para mim. Deleitei-me com a tristeza de tal forma que não quis deixá-la ao relento. Mas ela me maltrata tanto...

quarta-feira, dezembro 27, 2006

Sexo

-Ai, meu deus! - dirás,
virada no avesso
-será que eu mereço?E eu responderei, la de trás:
-Calma, é só o começo!
-Mas querido...eu nem te conheço!
-Viste, me tens por querido.
Logo, me tens apreço.
-Sim, apreço e libido!
-Então...que mal há nisso?
-Tens razão garoto perdido!
Não há mal nenhum, vá em frente!
-Assim -...- ou diferente?
-Não importa mais, já não pense!
-Está bem, eu esqueço!

Lucas Andrietta (convidado por Tigre02)

segunda-feira, dezembro 25, 2006

Auto de Natal

Tristes tigres avançam pela estrada.
Uma estreita estrada onde passa só um por vez.
Um tigre,
Dois tigres,
Três tigres na estrada.

Estrábicos, os tigres olham para frente e vêem uma família.
A faminta família, foge.
Foge do fogo.
E a mãe está grávida.

Vejam a gravidade do problema.
A estrada é estreita.
Mas há uma estrebaria. E nela a família adentra.
Lá nasce o menino.

Os tigres chegam. Aquecem e lhe trazem presentes.
Três pratos de trigo para o menino triste.

É natal.

Discurso de um velho sertanejo cansado para o coronel dono de suas terras


“Arre! O sinhô di novo aqui dotô?
Mais é dinhero que o sinhô qué tê?
Já que veio, ocê mi faiz um favô:
Também leva essa agonia de vivê”

“Esse miserê que só mi traiz dô,
meu medo di não vê o dia amanhecê,
a terra seca que o sor arrasô,
sabê antes que meus fio num vai crecê.”

“Ou vamo trocá o que ocê mi robô
por um par di asas das mais bela e pura,
pra atravessá as estrada do dissabô.”

“Faiz meu coração di pedra bem dura,
pra que eu óie pra tráis sem tê o pudô
di quem abandonô a vida escura.”



Talvez ele saiba mesmo o que é pudor e dissabor, ou talvez seja só para complementar a rima.

domingo, dezembro 24, 2006

A Tristeza

Que defina-se, então,
a tristeza:
é a ausência
de alegria;
mas que disso não se defina,
depois,
a alegria,
como a ausência da tristeza.

Tristeza
é sentimento de convalescença,
é, em si, também
uma moléstia:
tem por sintomas um olhar murcho,
amuado,
olhos caídos e sobrancelhas arquejadas,
formando um A
sem cortar-lhe o meio
(como que um "V" ao contrário).

A tristeza
deforma o rosto,
esconde os dentes
e causa torcicolos.
O tratamento, aí depende.
Que a tristeza de cada um
é cada um
que a sente.

As causas da tristeza
são muitas,
tantas
quanto as causas d'alegria:
pode ser mágoa, rancor,
indiferença;
até birra,
e mesmo mimo
não atendido.

[...]
(continua)

Sinônimo não trava a língua


Então digamos que precisão há no destravamento de um trocadilho aliteratório em troca de uma sinonímica comparação entre necessidade e precisão? Ao que respondes, sem cerimônia que a precisão é de necessidade, é de precisarmos, mas tal destravamento mais me soa ao travamento sensual das idéias em lugar das palavras, estas sim coisas em lugar daquelas, fantasmagorias.
A tristeza, enquanto sentimento de pesar, pode-se considerar sim, por hora, uma não-alegria (ainda que se diga que a alegria é também uma não-tristeza), isto é, ausência de um estado de satisfação etc e tal; mas se tão somente assim a considerarmos, que precisão nisso há? Consideremos, então, a tristeza como um estado de súbito des-amparo, in-felicidade, oriundo da in-satisfação de uma vontade ou esperança (que não deixa de ser uma vontade em que se acredita), mas tal definição em nada nos destravaria.
E, se são três os tigres, e ainda por cima tristes, porque dizer três jaguares melancólicos?

Destravar é preciso, retravar não é preciso

Tigre não é jaguar, mas é felino como a onça e o leão e o gato que trepa no telhado de suas casas e mantém o sono longe. Talvez o Tigre 02 fale disso com mais propriedade.
Melancolia não é tristeza, nunca seria. Melancolia é um estado mórbido de tristeza e depressão; tristeza vaga. Tristeza é falta de alegria; aspecto revelador de mágoa e aflição; consternação, segundo um dicionário vagabundo que encontrei na estante.
No dicionário tudo é a mesma merda, não explica. Melancolia para mim é o estado prazeiroso da tristeza, onde a gente estanca por puro deleite. Melancolia é bom. Só é bom porque é frescura. Uma Macabéa da vida não teria tempo pra essas coisas.
Tristeza vem e perturba. Perturba porque você não queria. Perturba porque faz parte da vida, você sabe disso, sabe que dia ou outro ela virá, mas nunca a espera. Tristeza é ruim. É ruim porque é inevitável. Macabéa, mesmo sem saber o que era, a tinha.
Tirando o pêlo preto do jaguar, a juba do leão, as pintas da onça e pondo em uma fotografia de fundo branco e nada mais, tudo acaba virando felino. Seria a mesma coisa tirar a frescura da melancolia e o inevitável da tristeza.
Mas sejamos realistas, não há jaguar sem pêlo e muito menos melancolia sem frescura.

sábado, dezembro 23, 2006

Retravando o trava-línguas

De modo geral, ao menos de acordo com o senso comum, tigre não é jaguar; pode ser que aos argentinos, que chamam onça jaguar, tigre também o seja, e, assim, tigre e onça seriam sinônimos, o que, ao ver platino, faz dele um jaguar. Mas falar em tigres por estas bandas soa um tanto quanto deslocado, visto que por aqui, naturalmente, não os há, o que fará de Borges uma referência a ser seguida e que se entenda, então, a partir daqui, por tigre o jaguar, e a onça, a que sou mais afim, ou mesmo um gato, um lince, um felino qualquer, ou qualquer outro bicho; isso porque o mundo dito nos fica a mercê, e pode-se fazer comparações as mais absurdas, e mesmo igualar termos que obviamente não são iguais.
Tigre não é onça, é tigre, assim como tristeza não é melancolia; as coisas podem ser parecidas mas não as mesmas. É óbvio que se deixássemos as línguas ao jugo dos poetas haveriam infinitas palavras para cada coisa, a fim de rimar com outras coisas que quisessem expressar num verso anterior, o que faria da tristeza, a melancolia, ou outras coisas mais, às vezes até mesmo um tigre. Mas, se seguindo neste rumo chegamos a tais comparações, poderia-se entender também os três tigres como variações de um só tigre (ou jaguar que seja), este sim, absoluto, o que os misturaria de alguma forma; assim, três tigres seriam, no fundo, um tigre três vezes, ou três vezes um tigre, uma mudança de quantias, coisa de receita.

A língua de Babel, esta só é falada por este tigre absoluto, que sente uma absoluta tristeza e come do mais puro trigo.

Vira-se, então, perante o Absoluto, num momento que já não era, nem seria, e tampouco fora; num lugar que ao mesmo tempo (que não era nenhum) era lugar-nenhum e todo-lugar. Encontrava-se, sem encontrar (nem a si nem ao outro), perante e cercado, permeado e constituindo, enquanto, por sua vez (que era a mesma do outro) também como constituinte do Absoluto, da total unidade entre a essência e a aparência do mundo. Num instante que não existia, encontrava-se como que numa brecha do tempo, em termos compreensíveis para nós, enquanto que estava para além (ao mesmo tempo que aquém e junto) do tempo, num lugar que ficava além (e aquém e no) do espaço; era, então, naquele momento que não era momento, naquele lugar que não era lugar, o Absoluto.

A Escrita do Deus



"[...]É uma fórmula de catorze palavras casuais (que parecem casuais) e me bastaria dizê-la em voz alta para ser todo-poderoso. Bastaria dizê-la para abolir este cárcere de pedra, para que o dia entrasse em minha noite, para ser jovem, para ser imortal, para que o tigre destruísse Alvarado, para afundar o santo punhal em peitos espanhóis, para reconstruir a pirâmide, para reconstruir o império. Quarenta sílabas, quatorze palavras, e eu, Tzinacan, regeria as terras que Montezuma regeu. Mas eu sei que nunca direi estas palavras, porque eu não me lembro e Tzinacan.

Que morra comigo o mistério que está escrito nos tigres. Quem entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desígnios do universo não pode pensar num homem, em suas triviais venturas ou desventuras, mesmo que esse homem seja ele. Esse homem foi ele e agora não lhe importa. Que lhe importa a sorte daquele outro, que lhe importa a nação daquele outro, se ele agora é ninguém? Por isto não pronuncio a fórmula, por isso deixo que os dias me esqueçam, deitado na escuridão."

~BORGES, Jorge Luís. A Escrita do Deus
No coletivo quase lotado não lhe sobrava lugar no assento a que se referia a passagem. O atraso do ônibus somado ao caos da estação rodoviária já lhe haviam acabado com o humor, de forma que não se sentiria nem um pouco mal de deixar claro ao usurpador o quanto ele podia estar atrapalhando a viagem de todos; o usurpador, uma gordinha, contudo, estava acompanhado, e, pelo visto, de sua companheira - e com um casal de lésbicas é que não ia brigar por um assento.
Sentara-se, então, ao lado dela, que lhe era a pessoa mais familiar ali; haviam já passado uma hora juntos, lado a lado, nas cadeiras do saguão de espera da estação - uma hora sem dizer palavra. São poucos os casais mesmo de longa data que conseguem tal façanha, de ficar tanto tempo em silêncio, simplesmente ali, lado a lado. Sentou-se, então, ao seu lado, sentia-se até que muito bem ali, sentia-se como que confortado por uma presença familiar. Ela também reconhecera-o. Lembrava do moço que ouvia o walkman balançando os pés, num ritmo meio rápido, mas constante, como que um jazz, aquela bateria de leve fazendo sempre a mesma batida, txa-tsii, txa-tsii, txa-tsii.
Ela abriu sua revista, meio que só para folhear, a fim de não dar a entender que o observava. Ele então, virou de lado, pregou nos ouvidos os fones e fingiu dormir a viagem toda.
Ela lia Veja. Ninguém pode ser interessante lendo Veja.

Treinamento Truculento

O tirânico tratador treinava tigres no trapézio através de truques traiçoeiros

Destravando o trava-línguas


Todos os três tigres são tristes, mas a tristeza é sempre tua e de mais ninguém. Cada tigre sabe da sua tristeza e sabe também que, se tentar explicá-la, nem mesmo ele entenderia. A tristeza, ou melancolia (para que isto não se torne um trava-língua) fala a língua de Babel fluentemente.
Por isso, enquanto um tigre chora por pratos de trigo, outro chora por Trotski e o último chora por trapaças e desventuras. Tudo se torna tão trincado que, a única coisa que é certa no trava-língua é o número de tigres: Três.
Três vidas advindas de três turbulentos maremotos que se cruzam um dia, caminham juntos, mas não se misturam, por mais que tentem. Não se misturam e nunca se misturarão.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

ENCONTRO

Na noite escura, dois olhos brilham.
Cintilam. Num passo lento e firme está o tigre.
À frente, em seu encontro vem, se esgueirando nas sombras, mais um felino.
No alto do muro temos mais dois olhos.
São três pares de olhos brilhando no escuro. Cintilam. Choram.
Seis olhos de três tigres tristes.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Três cretinas traças traçavam, em cima da estante, um livro,
Quando três tigres tristes trouxeram seus pratos de trigo.
Um tigre, franzino, traçou metade do prato
Os outros tigres traziam também cada um três gatos
E, sem trato, tiraram do meio de um roto trapo
As tripas estragadas de um peixe que já fora traçado.
As traças taradas traçaram um terço do trigo
E os tigres, estressados, estropiaram os livros.

que merda
Três tigres tristes traçam três pratos de trigo.
Três pratos de trigo para três tigres tristes.
Três tigres tristes trouxeram três pratos de trigo.
Três tigres tranqueiras estriparam três traças tristes.
Três traças tristes trancaram tigres com trigos.
E os tigres entristecidos traçaram todo o trigo do prato.