sábado, dezembro 15, 2007

Cochicho


Todos estavam calçados. Isso não seria de se admirar se ela não estivesse descalça. Todos estavam calados. Nesse ambiente isso seria comum se ela não estivesse a falar. Todos estavam parados. Nada mais apropriado se ela não estivesse a dançar. Todos a olhavam e ela não via ninguém.
Descalça falava, dançava e se esquecia, não se importava! Estava linda, bem vestida, cabelos a girar no ar que tentavam acompanhar o seu corpo rodopiante. Não via, não ouvia nada ao seu redor, só o seu interior. Alguns suspeitavam que ela assim fugia...mas não. Sabia onde estava, sabia o que fazia, era um canto de glória, uma dança de alegria. Feliz estava, pois não tinha motivos para entristecer, o que acontecera, com ela, comigo e com você um dia irá acontecer!

"Mas velório não é lugar de dançar!"

sexta-feira, novembro 30, 2007

Pura Lua



Se ao olhar para a Lua, sente-se enganado, ludibriado, não esqueça tampouco que essa mesma luz o deixa admirado, fascinado.
Ela pode não ter a força, o calor do Sol, nem seu alcance, pode não ser capaz de fazer das trevas o dia, do inverno o verão, do claro o escuro, do frio a quentura.
Pode não atrair aos outros astros, fazendo-os girar ao seu redor!
Sim, nada disso pode, mas ainda assim é fascinante, admirável, talvez por mais irreal, ladra que seja a Lua, mais magnífica, encantadora nos parece.
Se ao olhar para a Lua sente-se enganado, seduzido, não esqueça que diferente daqueles que tem luz própria, que sem querer seduzem pela sua própria luz própria, como o Sol, a Lua esforça-se para encantar sem nada ter e para isso não rouba, toma emprestado, se faz refletir, lembrar quando o Sol já tinha se retirado.
A Lua pode não esquentar quando faz frio, mas nos faz esquecê-lo por um instante, pode não transformar escuro em claro, mas faz até do escuro um lugar belo, pode não fazer do inverno verão, mas aparece em mesma intensidade durante todo o ano, pode não levar as trevas e trazer o dia, mas acompanha as trevas para torná-la encantadora, pode não ter força, calor ou grande alcance, mas quando aparece majestosa é capaz de aprofundar-se nas almas, aquecer o coração de forma única.

Por isso não se engane com a Lua, ela não quer enganar ou fascinar, ela é pura e faz como pode para agradar...

domingo, setembro 23, 2007

Luz de estrela

Não é hora de estar acordada, nem ao menos escrevendo. Mas não é justo, esconder, por egoísmo, o que acabo de descobrir.
Um sentimento novo, que me deixa feliz, ainda que o contrário fosse o esperado, mas não o permitido.
Sem explicação:
Não é como luz da Lua, que engana o desavisado, sendo somente luz roubada, de outro astro, não dela própria.
É como luz do Sol, que ilumina e esquenta, a uma distância longa, mas suficiente.

Aproxima e queima.
Afasta e gela.
Permanece e nutre.

domingo, agosto 12, 2007

O que me preocupa

Sabes o que me preocupa?
Preocupa-me saber que daqui a alguns dias ou horas até
tu me verás como a uma máquina repleta de defeitos
e ilusões.
Verás em meu rosto, que imaginaste belo no princípio,
uma espinha ou uma cicatriz.

Haverá momentos em que minhas mãos,
que já foram macias e carinhosas
tornar-se-ão ásperas e difíceis de aturar
Momentos em que minha voz sussurrante
acaba em gritos inaudíveis.

Posso deixar de amar a poesia
ou os princípios que mais defendi quando jovem
Posso acabar no sofá, assistindo a novela das oito
procurando engordar o quanto puder.
Posso me tornar um burguês
e preferir charutos a amigos.

Eu, que fui romântico e sensível quando te conheci
posso acabar como o oposto daquilo que gostaste em mim.

Sabe o que me preocupa, mais do que a calvície
que se apodera de mim
Mais do que a melancolia e o conformismo
que me invadem o espírito?
Preocupa-me perder depois de tudo
aquela que me faria olhar para os pés
e mandá-los seguir em frente: Tu.
Até porque antes que eu descubra tuas imperfeições
tu verás claramente as minhas.

sábado, agosto 11, 2007

[porque é] (cummings, e.e. "10" in: 73 poems. 1963)

porque é

Primavera
coisaS

ousam fazer pessoas

(& não
o jeito

contrário)porque

é A
bril

Vidas guiam suas próprias

pessoas(ao
invés

de quaisqueroutros)mas

o que é completamente
maravilhoso minha

Querida

é que você &
eu somos mais que você

&eu(por

q
u

e Somos nós)

segunda-feira, maio 21, 2007

Por que choro assistindo Forrest Gump?

Choro assistindo Forrest Gump porque lembro-me de alguém. Choro porque ele está preso e não vai a lugar algum. Choro porque ele não sabe disso e corre. Choro porque ele corre quando lhe mandam correr. Choro porque ele corre preso e não consegue correr. Choro porque ele me surpreende e faz o que não fiz. Choro porque ele corre e não tropeça. Choro porque ele se liberta.
Choro porque ele se liberta.
E a inocência vence, afinal.

domingo, maio 13, 2007

Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Ferreira Gullar de Dentro da Noite Veloz (1962-1975)
poema retirado do Jornal da poesia

domingo, abril 29, 2007

O menino e o ralo

Hoje vi um menino. Ele brincava no pátio, pisando as grades que o rodeiam, aqueles longos ralos por onde corre a água da chuva. Era jovem, muito jovem o menino, e para ele, eram enormes aqueles ralos, pisava-lhe as grades com os dois pés e ia por ali andando, nas pontas a grade bambeava e batia de volta no chão, fazendo aquele barulho de metal, e ele ria, ria e dava voltas e mais voltas sobre o ralo.

Lembro também dos ralos de minha infância, quando os pisava eu também com os dois pés e sobre eles andava, ouvindo os sons que faziam as grades ao chocarem-se com as bordas, quantas vezes ouvi minha mãe dizer que qualquer dia eu caía nalgum daqueles buracos. Lembro de quando inauguraram um calçadão por lá, que tinha uns bueiros enormes no meio, umas grades retangulares muito mal encaixadas nas bordas e que davam num bueiro fundo em que cabia em pé um menino do meu tamanho na época. Era um terror. Mas fazia um barulho tão bonito ao ser pisado, quando as grades batiam, que não podia deixar de pisá-los, às vezes mesmo pular sobre eles, quando não olhavam as mães.

Vendo ali o menino, que é muito mais jovem do que eu nessa época, lembro dos ralos de minha infância, ele ainda aí, dando voltas e voltas nos ralos que dão voltas no pátio em frente à repartição. Vejo-o rir enquanto caminha sobre aqueles ralos onde hoje apago meus cigarros, até acendi o de seu pai que nem imagina que também eu me divertia sobre os ralos dos pátios de minha infância, onde outros homens amargos apagavam seus cigarros. Ele dizia não vá longe, e o menino ia. Uma hora olhou para mim e disse é só falar. Eu ri e concordei. É mesmo só falar.

Meu cigarro acabou, e eu jogo a bituca naquele ralo onde agora reina o menino.

O menino ali, nos ralos, se diverte.

E eu tenho que voltar à porra da repartição.

sexta-feira, abril 20, 2007

Soneto de Criação

Deus te fez numa fôrma pequenina
De uma argila bem doce e bem morena
Deu-te uns olhos minúsculos de china
Que parecem ter sempre um olhar de pena.

Banhou-te o corpo numa fonte fina
Entre os rubores de uma aurora amena
E por criar-te assim, leve e pequena
Soprou-te uma alma calma, cálida e divina.

Tão formosa te fez, tão soberana
Que dar-te aos anjos por irmã queria
Mas ao plasmar-te a carne predileta

Deus, comovido, te criara humana
E para tua justa moradia
Atirou-te nos braços do poeta.

de Vinicius de Moraes , que poderia ter ido ao bar com algum dos tigres, se os conhecesse.

O que poderia ter sido

Quando toda uma vida valeria a pena de novo,
fez-se novamente o pranto,
com tudo o que poderia ter sido,
com tudo o que dela já se fez.

Quando poderiam voltar os sorrisos, os flertes,
as bobagens indispensáveis do viver,
bateste com a porta na minha frente,
fizeste meu peito romper.

Quando o futuro tornou-se breu
no olho mágico da porta que me ofereceste,
só o que fiz foi sentar encolhido, com a cabeça entre as pernas e,
com a voz grave e triste, dizer:
- Um dia ela vem.
E até hoje espero.


O tigre 3, sempre esperando, a besta.

terça-feira, abril 10, 2007

A traça e a boneca

O coração de pano rasgou-se outra vez.
Linha e agulha precisam andar depressa. Mais um remendo do amor que não foi.
Pobre coração de pano. Antes fosse de seda, mas é do mais vagabundo algodão. A traça faz a festa enquanto a boneca chora, sozinha, esquecida, em meio à tantos outros brinquedos usados.
A boneca só precisava de carinho, mas como era boneca velha foi recusada até pela traça.
Triste vida de boneca de pano sem dono. Bem feito, fosse boneca de porcelana todo mundo teria cuidado.

Tigrilelar

Nos últimos tempos os tigres estão tristes demais. Tão tristes que silenciaram. Percebem que o fogo vem se apagando.
A tristeza é forte. A carne é fraca. E as traças, escondem-se no escuro.
Um tigre se levanta e clama:
- Não deixem de tigrilelar!

segunda-feira, abril 09, 2007

Ligue-pontos

O mundo é pontuado por momentos alegres e tristes. Difícil não é perceber isso, mas sim ligar os pontos.
Eu percebo, mas não ligo.

sexta-feira, abril 06, 2007

Lugar nenhum

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus
Tempo de absoluta depuração
Tempo em que não se diz mais: meu amor
Porque o amor resultou inútil
E os olhos não choram
E as mãos tecem apenas o rude trabalho
E o coração está seco

(Drummond, em Os ombros suportam o mundo)

domingo, abril 01, 2007

.

O mundo é cruel tigres, mas não desanimem. E traças, o alimento ainda não acabou.



www.ovelhodeitado.blogspot.com

domingo, março 11, 2007

quinta-feira, março 08, 2007

terça-feira, março 06, 2007

Casa grande e senzala

Ele perambulava por toda a fábrica, mas nunca se sabia como é que chegava. Não se sabia porque sua cabeça se inclinava de tal forma que a vista apontava direto ao chão. Conhecia as rachaduras no piso decor. Toda vez que era bipado, colocava o cinto cheio de ferramentas nas quais duas ou três seriam suficientes para todo o trabalho. Não corria. Por maior que fosse o desespero, não corria. Dia desses chegou na máquina, levantou os olhos para o operador e disse:

- O que foi?
- Não sei. Eu tava trabalhando normal aqui e parou do nada. Não funciona porra nenhuma. O Moreira tá puto comigo porque a máquina ficou parada a semana toda. Não dá pra dar um jeito não?
- Eu preciso de um dia. Em um dia eu dou um jeito. Vocês nunca me dão um dia, então que fique quebrando.
- Eu não posso, liga pro Moreira e pede.
- Não vou pedir porra nenhuma, o desgraçado grita até com a mãe.
- Eu vou avisar que a máquina parou então.

Joaquim ficou olhando a máquina. Sabia o que era e precisava de um dia. Voltou ao seu setor e pegou o que era necessário para o trabalho. Quando voltou, topou com o Moreira gritando com o operador:

- Ele não arrumou essa porra ainda?

Ele ficou atrás do Moreira, olhando. O Moreira era um maldito que não entendia nada e por causa disso compensava com rudeza e potência de voz. Mas com o Joaquim ele não gritava, tinha medo do olhar rancoroso do eletricista. Quando o chefe percebeu que Joaquim estava ali, virou gentilmente e perguntou:

- Quanto tempo a máquina vai ficar parada?
- Eu preciso de um dia.
- Um dia? Não tem como dar um jeito? Um dia é muito porra! O seu Alex vai ficar doido. Dá um jeito aí Joaquim. Não dá pra essa máquina ficar parada. Se não der, liga você para o seu Alex e informa.
- Eu vejo se dou um jeito.

Joaquim abaixou a cabeça e seu Moreira saiu resmungando. O operador olhou para ele e disse:

- É Joaquim. A gente precisa de máquina porque senão o cliente reclama.
- Que cliente o caralho! Você é uma porra de um peão, nem sabe o nome do maldito engravatado que encheu o cú do seu chefe de dinheiro. Não fica me falando merda.

O operador ficou resmungando igual ao seu Moreira.
O telefone tocou. era seu Alex. Queria falar com o "rapaz da manutenção".

- Viu, o Moreira me disse que você quer um dia?
- Não precisa mais não seu Alex, eu dei um jeito aqui.
- Ah bom! Eu achei que já ia ter que te internar num manicômio! Já está virando a máquina então?
- Já.
-Ótimo.

Joaquim desligou o telefone, escolheu a chave de fenda que menos usava no seu cinto, cravou a ferramenta no painel da máquina e disse:

- Pode virar agora. Amanhã a gente se vê de novo.

domingo, março 04, 2007

Antes do beat da beata

Não segure muito seus instintos
Porque isso não é natural
Saluceie para acordar um grito forte
Quando queira gritar
É saudável, relaxante, recupera
E faz bem a cabeça
Por isso canta, dança, grita

Vá em frente entre numa boa
Não controle, não domine, não modele
Tudo isso faz muito mal
Deixe que a mente se relaxa
Faça o que mandar o coração
Por isso canta, dança, grita

Chega de fugir, de se esconder
E de deixar a vida pra depois
Como se tivesse o tempo inteiro
O tempo corre nada vai te esperar
Entra de cabeça nos seus sonhos
Só assim você vai ser feliz
Por isso canta, dança, grita

Não se reprima
Pode gritar

(Menudos, em Não se reprima)

quinta-feira, março 01, 2007

Os passos da menina apertaram-se. Hoje escurecera cedo.
Pela manhã a garota se vestira com uma malha de ginástica e pusera seu boné cor de rosa na cabeça.
Estava pronta, com sua bicicleta nos braços esperando pelo pai. Ouviu uma buzina. Espiou pela janela da sala num pulo, despediu-se da mãe. Seu pai havia chegado. Os dois tinham combinado um passeio no parque. O homem, que já beirava os 40, não acreditava como sua menininha estava se tornando uma bela moça. "Treze anos". Os cabelos bem compridos e amarrados pelo vão do boné, já não eram os mesmos que o pai costumava acariciar, no colo, anos atrás.
Desde que se separaram, o pai via esses momentos de prazer e diversão ao lado da menina rerearem-se com o passar dos dias.
Àquela manhã foi inesquecível. E o almoço foi o momento onde colocaram o papo em dia. Para orgulho do pai, a menina ia muito bem na escola. Fora chamada até mesmo para presidir um grupo de estudos. Hoje haveria uma das reuniões, na casa de uma das colegas.
O pai não pudera esconder que ficara chateado, mas entendia que alguns compromissos só deixavam a filha mais responsável e preparada para as dificuldades da vida.
Depois daquele almoço, onde abrira mão de encontrar-se com a filha, o pai levou-a ao prédio onde morava a colega. Despediram-se com um beijo doce, como só havia entre um pai e sua filha.
Os passos da menina apertaram-se. Hoje escurecera mais cedo.
Atrás dela, andava um homem, que jamais fora pai nem tivera um. Alguém que sequer imaginou o tamanho da dor que causou e outro pai, aquele que andou no parque, almoçou e beijou sua filha pela última vez naquele dia.

Perdoando Deus

Enquanto eu inventar Deus, ele não existe.

(Clarice Lispector, em Felicidade Clandestina)

sábado, fevereiro 24, 2007

Quem tem medo do lobo mau?

O fato é:
se na minha casa há muros altos e portões fechados
se na minha rua as pessoas entram às onze da noite
se no meu bairro os vigias noturnos patrulham e despatrulham
se na minha cidade há mais condomínios fechados que favelas
se no meu estado dizem que o marcola é o governador
se no meu país o presidente diz "terroristas!"

não seria porque o Willian Bonner tem mais medo do lobo mau que qualquer um aqui?

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Com que roupa eu vou pro samba?

Se forem fazer sexo,
seguro é vestir camisinha.
As fantasias são opcionais.

Beijo pra quem é de beijo,
abraço pra quem é de abraço,
se cuidem e boa folia!

"Ô abre alas que eu quero passar
Eu sou da lira não posso negar
Rosa de ouro é quem vai ganhar"

(Chiquinha Gonzaga, em Ô abre alas)

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

quem era foda

quem era foda, se fudi
~móveis coloniais de acajú, e agora gregório?

como pode?

Mas como pode um ser humano sentir-se só no meio de um mundo desses? - era o que se perguntava. Mas antes, levantara-se naquele dia comum como qualquer dia de seu cotidiano repetitivo e rotineiro de forma preguiçosa e mal-humorada, mijara, lavara-se, vestira-se, partira-se, balbuciando ofensas impronunciáveis num texto deste tipo de circulação, enfim, não deixava de cumprir seu procedimento operacional padrão de acordar. O dia nascera semi-banal, desses que prometem não prover o cotidiano de absolutamente nada diferente que possa atrapalhar essa maravilha da sabedoria humana a que se convencionou chamar de rotina. Mas como dizíamos, teve inclusive seu costumeiro devaneio sonífero em pleno ônibus atrapalhado por uma pequena confusão entre sonolentos senhores e garotos empolgados, e não pôde completar o raciocínio e entender como podia um ser humano sentir-se só naquele tipo de situação: encontrava-se dentro de um meio de transporte coletivo lotado, o que aproximava muito as pessoas, até demais, arriscar-se-ia a dizer, e que além de tudo, viajavam seguindo um objetivo comum, mesmo que não fossem ao mesmo lugar, ou em busca da mesma quantia, todos ali compartilhavam do âmbito comum de comparecer como era dever de cada um ao seu emprego ou qualquer outra forma de ganha-pão que se freqüentasse por aquelas paradas, e pertenciam mais ou menos à mesma classe social. Todos ali eram, portanto, companheiros em potencial, possíveis amigos até, e alguns expoentes de simpatia extremamente desenvolvida realmente demonstravam ser isso uma verdade, mas ainda assim uma barreira mística os impedia de se relacionar, como se a vida comum fosse apenas um desvio de caminho a que todos infelizmente eram obrigados a se sujeitar, como se as pessoas às suas voltas fossem apenas companhias descartáveis que forneciam uma pseudo-confortável sensação de união. E como podia um ser humano sentir-se só? Não sabia.

Monstros S.A.

Já fizeram tanta coisa por aí que hoje se faz errado mesmo sabendo, também acontece de fazer certo não sabendo. É verdade que não por aventura, desafio, talvez sim por esse jeito fácil de sobreviver. Porque viver não é brincadeira não. E já que ética virou uma tática para cada um, podemos ter moral ou não ao piscar os olhos. Assim construímos monstros e semideuses, e assustados se estamos errados sabendo, ou certos não sabendo, chamamos isso ou aquilo de monstruosidade.

domingo, fevereiro 11, 2007

Monstruosidade?

Sabia que era errado mas fez. Fez não por desafio, por aventura. Fez porque era o jeito fácil de fazer e sobreviver. Mesmo fazendo o que era errado, sabia que não era tão errado quanto tanta coisa que já fizeram por aí. Também havia ali uma moral a ser seguida e que, não obstante, muita gente acabava seguindo.
Mas o problema foi que durante o pequeno erro, piscou-se o olho e outro pior aconteceu. Aquilo até para ele era errado demais. Tão errado foi que chamou-se aquilo de monstruosidade.
De um erro a outro basta um piscar de olhos. A gente se assusta, mas é exatamente disso que todos somos capazes; sem intenção, é claro.

Os rascunhos libertinos foram atualizados.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

O mundo é bão, Sebastião

Vou fazer um comentário social e espiritual. Da brutalidade, o menino João e também os jovens bárbaros são vítimas. Um comentário humano seria diferente, pela dor de todas as pessoas ao perceberem tamanha monstruosidade de nossa vida miserável.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Se eu pudesse ter saudade

Ah! Se eu pudesse ter saudade
Saudaria a aurora
Amélia de verdade
Saudaria toda jovem guarda
Que os anos já não guardam mais

Que auroras, que sol, que vida,
Que noites de melodia?
É tanta correria
Que eu não posso ter saudade

Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar
O saldo não valoriza
Mas saudade até daria

Ah! Se eu pudesse ter saudade
Eu saudaria!

(se eu pudesse ter saudade, samba pra burro meu)

domingo, fevereiro 04, 2007

Apertara com o indicador o botão do acendedor elétrico, magnífico dínamo criador da faísca necessária ao acendimento da chama branda do fogão antigo. Punha agora três colheres rasas de açúcar cristal à água, e mexia, deixando-a com um aspecto esbranquiçado, que fazer se assim é que apreciavam o café na casa, doce, muito doce, com a fervura viria a dissolver-se o açúcar e logo mais pareceria a água doce e fervida com uma água qualquer, só a denunciando as bolhas da fervura nas bordas da leiteira.

Enquanto tombava a água quente ao filtro com o pó negro, com a alta temperatura da água chiando alto ao encontrar as superfícies ainda frias da parte superior da leiteira, tentava enumerar tudo o que teria de fazer na seqüência. Enquanto filtrava o café, calçaria as chinelas e iria até à padaria buscar alguns poucos pães frescos, então acordaria o marido que resmungaria um bom dia e se arrastaria até o banheiro para lavar-se, passara há muito o tempo em que já acordavam se amando, sem saber direito distinguir do momento em que se amaram, dormiram, sonharam ou despertavam, agora era mesmo assim, um grunhido que significava bom dia, um beijinho que nem bem barulho fazia de boa noite; enquanto lavava-se o homem, comeria sua parte dos pães, a qual era muito pouca, porque mulher, e de meia idade, preocupava-se em não engordar muito, mais um pouco que o fizesse e o marido nem beijo de boa noite lhe daria, e o fazia sem nem pensar na barriga cada vez maior do homem, ultimamente dado aos prazeres de boteco, de conversa fiada, jogatina e cachaça, que fazer se era homem, e de meia-idade, já lhe acinzentavam na cabeça os cabelos que restavam, e trazia as mãos de muito calejadas. Depois de lavado o homem, o que não demorava muito visto que nem bem a barba fazia mais com a mesma freqüência dantes, da época em que usava um exuberante bigode, coisa que já caíra da moda, enquanto este comia a sua parte dos pães com o café que então já estaria todo coado, acordava as crianças, as quais já não o eram, mas assim insistia e chamar-lhes, acordem crianças, vejam se não perdem a hora, vamos, e era a estes que cabia dizer, ao levantar, bom dia, mãe, bom dia pai, a que ela respondia entusiasmada já há tantos e tantos anos com um belo sorriso na face e este respondia com o mesmo grunhido com que cumprimentava a mulher.

Haveria, então, de arrumar-lhes as camas, enquanto um se banhava e o outro comia, revezando-se assim os dois, o mais jovem geralmente o primeiro a comer, provavelmente por isso vinha assim se afeiçoando mais ao pai do que a outra, que primeiro costumava banhar-se e já ia à alta adolescência, idade em que pouco nos interessam os mais velhos, em especial os pais. Também ao noticiário da manhã não costumava atrapalhar, por também interessar-se, aos poucos, pelas informações que lhe dava, diferente do mais novo, que o considerava como tão somente um atraso aos desenhos animados, que em época de aulas não podia assistir, e assim ainda incomodava o pai, que andava cada vez menos interessado aos noticiários que, segundo ele, só falavam de desgraças, e conversavam nesse horário, entre o acordar e o banhar-se da filha mais velha, enquanto comiam e viam ao jornal.

Depois que comessem, e se banhasse o pequeno, o pai os levaria de carro às escolas, e rumaria ao trabalho, enquanto ela tiraria a mesa, primeiro os copos, a margarina, o pão que sobrasse, e então as migalhas, a toalha. Depois lavaria os copos, as facas, as colheres, tomaria um copo de café e guardaria o resto numa garrafa térmica, sentaria-se à frente da tevê para ver um pouco do programa de culinária mas logo se fiaria a limpar a casa. Limparia a cozinha, ou a sala, que logo precisaria fazer o almoço, chegariam os filhos e depois o marido, comeriam e logo mais o marido se retirava, precisava ficar também atenta ao horário, que às vezes se esticava este na frente da tevê e cochilava, não podia perder o horário de volta, os filhos rotina não tinham, cada dia era uma coisa, mãe vou ao shopping com as meninas, mãe vou jogar bola com os meninos, as vezes ficava o mais novo a jogar videogame e a menina a ler revistas na sala.

sábado, fevereiro 03, 2007

Ponto final

Já fazem duas noites que não durmo direito. Não sei se é o calor ou o novo colchão. Durmo mal e acordo cedo. Todos os dias, de segunda à sexta.
Trabalho na cidade vizinha porque aqui não tem oportunidade. Falta vaga, o salário é baixo e esse emprego veio a calhar.
Pego o ônibus às 6h20min. Para isso, acordo às 5h. Quando mato o banho, levanto às 5h30min. De tanto ir e vir já conheço motorista, cobrador, passageiros. Destes não sei o nome, porque também não sou de conversa.
Entro e sento sempre na 31. Treze é meu número de sorte, mas há quem diga que é mau agouro. Então optei pelo 31.
Muitas vezes durmo. Noutras tantas só finjo. Quando o sono não vem começo o paciente serviço de observação.
Não, não observo a paisagem. Observo as pessoas. E hoje, justamente hoje, apareceu um passageiro incomum.
Não era comum somente porque não se portava como a maioria. Não dormiu. Não leu. Não usou seu MP3 player (tecnomordenice, que aderi com custo).
Voltando ao passageiro-personagem, é bom lembrar que se tratava de um homem. Vestia branco: bermuda, camiseta e meias. Calçava tênis. Ia sentado na poltrona do corredor, com uma sacola na mão.
Logo atrás de mim, vinha um sujeito do tipo “chato” e inconveniente. Enquanto observava o outro, este berrava no celular.
Fechei a revista que lia. Não conseguia me concentrar. Era o falatório de trás e a figura sentada no banco do corredor.
Quando a conversa ao telefone acabou, alguém continuava falando. O sujeito do corredor mudara-se para a janela e conversava sozinho. Esforcei-me para ouvir, mas nada compreendia daquele diálogo. Mas o rapaz conversava. Em seus braços e pernas haviam marcar vermelhas, purulentas e feridas. Ele se coçava. Ergueu até mesmo a camiseta branca para coçar a barriga. Houve festa de pernilongos nas noites passadas. Ou queria acreditar que assim havia sido.
Pensei com meus botões: “de onde esse sujeito apareceu?”. E também “para onde ele está indo?”.
Fato é que jamais saberei a resposta. E assim acontece todos os dias, sempre que chego no ponto final.

segunda-feira, janeiro 29, 2007

A humanidade não vive de sábios

"A pressa é inimiga da perfeição." (Rui Barbosa, Frases - pag.37)

"Se for pra serrr feliz assim, serei maluco até o fim."(Rua Campos Salles,903 -3ºandar)

A humanidade não vive de sábios

"A pressa é inimiga da perfeição." (Rui Barbosa, Frases - pag.37)

"Se for pra serrr feliz assim, serei maluco até o fim."

Suicídio

Nascera,
Um pouco vivera,
Se iludira, caipira, e viera.
Investira e perdera.
Não usufruira.
Não obtivera o que pedira.
Se abrira e desiludira, discutira,
De nada servira.
E a mentira, ouvira.
E a ira, crescera.

Agora, considera.
Pra onde a vida o conduzira,
O confundira: caíra.

Medita e conspira. (Inspira... Expira... Inspira... Expira...)

(Inspira expira inspiraexpirainspiraexpira...)

Vacila.
Transpira.
Perspira.

Suspira. Não mais importa ao que aspira.
Já não aspira a nada.
Chora.

Já decidira:
A arma retira.

Inspira expira inspira expira...
Transpira.
Delira.
Mira, na têmpora,
E atira.

O tempo pára.
É seu agora.

Não mais respira.
Do palco, se retira.
Se atira na pira,
Se expira. Partira.

Escoa...

domingo, janeiro 28, 2007

Soneca

Joaquim estava beijando apaixonado aquela por quem tinha amor eterno, mas não sabia. Não sabia porque no meio do beijo um barulho estranho batia-lhe nos ouvidos e ele abria os olhos para ver o que foi. Acontecia pelo menos uma vez por semana, mas Joaquim não se ligava nunca e abria os olhos.
Depois de abertos, seus olhos encontravam o celular vibrando na escrivaninha. Esticava o braço esquerdo buscando o aparelho, alcançava-o e pressionava o botão Soneca. Soneca era uma coisa esplêndida que alguns indíviduos preguiçosos inventaram para lembrá-lo de que ainda havia tempo. Ainda havia tempo e o dispêndio deste ficava à sua disposição. Você poderia voltar a dormir, dar uma trepadinha de dez minutos, ficar se espreguiçando, assistir o noticiário, ler as tirinhas, comer um bombom, dar aquela prazeirosa urinada matinal no inverno ou beijar apaixonado aquela por quem você tem amor eterno. O período destinado à soneca era gasto com o que se queria. Isso tornava aquele tempo ridículo de dez minutos que uma porra de aparelho eletroeletrônico lhe concedia o mais importante do dia.
Mas como desde o princípio (quando ainda era o Verbo e os substantivos nem pensavam em entrar na história) Joaquim era uma besta, seu tempo de soneca era gasto com a tentativa inútil de se lembrar o que acontecera no decorrer da noite. Joaquim não se lembrava nunca e sempre achava que nunca sonhava.

sábado, janeiro 27, 2007

A mãe vaca


Maria de Lourdes

Apesar do serviço doméstico, de lavar e passar roupas, cozinhar, lavar louças, de fazer faxina e criar os filhos, apesar de que, terminada a limpeza, já chegava no dia seguinte o momento de recomeçá-la, sim, apesar das mãos calejadas e das queimaduras de óleo quente nos antebraços, das varizes azul-celeste nas pernas de coxas grossas e quadril largo, apesar dos olhos de peixe nos pés e de uma ou outra unha encravada, e da iminente menopausa, apesar de passar por tudo isso com humor melhor que o do homem sentado à frente da tevê, era uma mulher frágil.

Não era dessas mulheres de se aventurar com homem qualquer. Tampouco de ficar muito tempo só. Chorava na juventude, e ainda hoje quando assistia a romances melosos em filmes ou novelas, ou quando o marido chegava tarde, fedendo a cigarro e cachaça barata, ainda que escondida. Antes, mandava-lhe cartas apaixonadas, em que borrifava um pouco de seu perfume barato de adolescente sonhadora, e dizia sempre que o amava ao que ele respondia com um grunhido, era mesmo apaixonada por ele. Não sabia o que faria sozinha.

Falava o tempo todo.

quarta-feira, janeiro 24, 2007

minha doce velha etcetera

minha doce velha etcetera
tia lúcia durante a recente

guerra poderia e o que
é mais lhe disse
que todos estavam lutando

por,
minha irmã

isabel criava centenas
(e
centenas) de meias para não
falar camisas e aquecedores de orelha à prova de pulgas

etcetera pulseiras etcetera, minha
mãe esperava que

eu morresse etcetera
bravamente é claro meu pai costumava
ficar rouco falando sobre como era
um privilégio e se ele
pudesse enquanto isso eu

mesmo etcetera deito quieto
na funda trincheira et

cetera
(sonhando
et
cetera, com
Seu sorriso
olhos joelhos e sua Etcetera)


e.e.cummings,
traduzido pelos tigres mas tirado daqui

terça-feira, janeiro 23, 2007

O caso dos tigres tristes

Três trigres tristes no bosque,
um foi pescar e então ficaram 2,
dois trigres tristes no lago, um engoliu um arrenque defumado e então ficou um,
um trigre triste no zoologico , um urso abraçou, e então ficou nenhum.

Inspirado no caso dos 10 negrinhos. Escrito por Lucas Valle Mielke.

Maria João

Não era mulher dessas que se lamentam por aí, dessas mulherinhas fracas que tem sempre de ter um homem em quem se pendurar. Por isso mesmo se destacava perante as outras, por ser meio superior nessa dureza, de pulso mais firme que muito homem barbado, mesmo com a aparência frágil que tinha. Bebia cachaça, comia chouriço e dava tapa na cara de qualquer um, jogava baralho e xingava nome feio; era mesmo uma grande mulher.

E acho que é por isso que tinha uma mania de arrumar pra si homem que não presta; também me sentiria livre para dar umas galinhadas se fosse eu o seu homem. E, assim, arrumava uns pingaiadas assustados, desses que tem pavor de se enroscar com mulher, e ficava sofrendo por eles por um bom tempo, levava meses e meses até perceber que andava pendurada em pescoço ladino, e se valorizar um pouco. Mas também isso durava pouco.

segunda-feira, janeiro 22, 2007

Na toca dos tigres

Nem sei se tigre tem cova, covil, toca ou alguma coisa que se valha, mas afinal onde é este esconderijo bondoso da existência? Porque se desse modo existir, uma traça deixaria o seu estado de roedor e buscaria roer outra coisa diferente da dor e roeria insensivelmente essa existência. Não basta ser tigre, ser traça, é preciso ter toca?

quinta-feira, janeiro 18, 2007

Cada rato tem um preço

Nove horas, José veste o macacão, calça as botas de borracha e instala a aparelhagem de tambores e tubos plásticos. Aciona a manivela e produz uma fumaça amarela que vai para as tocas. Os ratos correm e logo caem. Mortos. Ele recolhe num saco e vai jogar nos terrenos baldios da Várzea do Glicério. José tem uma cota diária de ratos. Ele sabe que no dia em que tiver exterminado todos os bichos, perde o emprego. Um dia, não tinha mais ratos. José foi à Várzea, pagou 50 centavos a dois moleques, cada um trouxe três ratos. Assim, José continuou trabalhando.
(Ignácio de Loyola Brandão, em Zero)

terça-feira, janeiro 16, 2007

monólogos reflexivos

[Falavam de reflexo. Lembrei do relato de um velho amigo, que segue:]

Um dia dei pra falar com o meu reflexo. Não era assim, caso de louco, apenas andava falando com meu reflexo, não falava com o espelho como diriam uns, nem sozinho, como é comum a outros, e tantos outros, diga-se de passagem, mas falava, tão somente, com o meu reflexo. Fora assim, meio que sem querer, um dia virei, olhei meio ressabiado praquele indivíduo refletido no espelho e me escapou um que foi. Claro que não tive resposta, nem é esse o ponto x da questão, é que, convenhamos, é um grande passo manter assim, nem um monólogo nem um diálogo, falar com o próprio reflexo, a própria imagem refletida por uma superfície brilhante e polida.
[...]
Mas, voltando ao que dizia, vale lembrar também que o falatório é mesmo comum mas não condiz em nada com a realidade, e, comentado ou não, falava mesmo com o reflexo, afinal, se me importasse com comentários não era com ele que eu falaria, mas com alguma pessoa qualquer, que, na ânsia de se comprovar viva, desataria a falar, como todos, disputando espaço com seu interlocutor numa conversa. É que é meio que natural, por não ser em si nem o mundo e nem os outros, mas tão somente a si mesmo, colocar todo o universo trabalhando em função disso, transformando-se no centro de tudo e todos, afinal, o mundo só se alcança pelos sentidos, já o eu por sentimento, primeiramente, e então uma quase plena consciência. Essas coisas, vim a pensar quando falava com o reflexo, que reflexo é engraçado, é só um fenômeno físico, coisa de reflexão e refração da luz, que por si, já é refletida e ou refratada pelo objeto que se reflete no espelho, imagina só o caminho que a luz faz, anos e anos viajando no espaço para então bater na atmosfera e ser refratada, bater no meu rosto e ser refletida até o espelho, quando é refletida de volta aos meus olhos, que a convertem em sinal quimio-elétrico, ou o que quer que seja, a ser transferido de ponta cabeças ao meu cérebro, que, então, a inverte, ainda é só uma imagem, e imagem não é nada, toca ao cérebro intelectualizar aquilo, de forma a eu compreender, por abstração, que aquilo é o meu reflexo, e se for um pouco mais longe, chegar, como já fiz antes, até ao sol, que, abstraído de sua beleza, só serve mesmo pra nos dar luz e calor.
O reflexo é coisa engraçada mesmo, rapaz, porque não é nada, nem existir não existe, mas, por inteligentes que somos, ora pode representar o objeto refletido, ora o espelho, ora a luz, oras, pode representar o que quer que queiramos. Mas responder não responde não, ainda bem, só fica abrindo a boca enquanto se fala, às vezes parece até ser de propósito, como quem fica a arremedar os outros por troça, mas só parece, porque sem ser um ser não pode aquilo ter vontade, não é nem ser nem nada, é só um reflexo, e por isso pode ser o que quisermos.
O meu reflexo, por si só não era nada, como cabe a todo bom reflexo que se preze, mas não deixava de ser, para mim, com a qualidade que eu lhe dava de ouvinte, uma espécie abstrata de companhia. Eu o tornara quase um ser, não chegava ao ponto de torná-lo efetivamente um ser, não o transformara num amigo imaginário, já não podia eu ser uma criança inventiva, tampouco sofria de esquizofrenia, enfim, eu o tornara um reflexo ouvinte. Na verdade, melhor dizendo, o reflexo não mudara em nada, continuava com sua característica de ser luz, ou seja, de não ser, e ora representar eu mesmo, ora representar o espelho, ora um ouvinte, enfim, o que realmente mudara fora mesmo eu, que, simplesmente, me tornara um homem que falava com o reflexo. O próprio, que, como já disse, não sou homem de falar com o reflexo dos outros. Pois bem, supõe-se que não seja à toa que alguém, de repente, se atine a falar com o reflexo, com tanta gente aí em volta. Mas é que, como já disse, conversar e falar tem diferenças sutis, é coisa meio besta a diferença, é que conversamos fingindo que nos interessamos pelo assunto da outra pessoa, quando, no máximo, nos interessamos pelo interlocutor em si. O falar com o reflexo em muito difere do falar com si, desde que não se considere o reflexo como representação de si mesmo, isto é, quando se considera o reflexo como tal, como um não-ser, e ainda assim se fala com ele, esse mesmo ato de falar com uma imagem, não enquanto representação mas tão somente como luz refletida, difere do ato de fala consigo na medida em que não serve nem para demonstração de si, quanto para auto-afirmação do discurso; em suma, provavelmente serve apenas, e tão somente, para se ouvir a própria voz, dizendo qualquer coisa que não tenha efeito nenhum. A partir do momento em que se atenta às palavras, o ato torna-se de falar-se, de discursar com e para si.
Pois bem, para não me perder em conjecturas baratas, no prazer auto-afirmativo do discurso, e depois não mais conseguir alcançar o fio da meada, voltemos à narrativa. Dizia eu que em dado momento de minha vida dei pra falar com meu reflexo. E isso ia muito bem, já se vê que não vai mais, usando esse verbo em tal conjugação, ao invés de vai, disse que ia, quando na verdade, dado o tempo que durou tal atividade e visto que, como já se notou, não é mais praticada no presente, o mais indicado à utilização seria foi, pois bem, foi então, e isso foi muito bem, soa esquisito, mas vamos por esse caminho: isso tudo foi muito bem por um bom tempo, até que em dado momento quebrou-se o espelho do banheiro contíguo ao humilde quarto em que eu morava. Dizer quebrou-se é força de expressão, pois, mesmo que de vidro, que é frágil por ser ductilíssimo, um espelho não é coisa que sofre lá muitos baques, é coisa bem construída, e mesmo que frágil, bastante forte, diga-se de passagem, e, assim, pode durar muitos e muitos anos pendurado numa parede qualquer, sem que ninguém lho mexa por má intenção ou mesmo por desproposital estabanamento. Quebrou-se o espelho porque fazia as vezes de porta a um armarinho de banheiro, desses armarinhos em que se põe escova e pasta-de-dentes, pentes, escovas, fios-dentais, cotonetes, barbeadores, cremes-de-barbear, loções pós-barba, cremes pra pele, perfumes e até às vezes alguns remédios mais comumente utilizados, entre outros objetos de higiene pessoal e produtos cosméticos. E, por fazer as vezes de porta, sabe-se bem como são as portas, era algo demasiadamente móvel, e pior, com uma mobilidade extremamente suscetível, e por que não dizer dependente, do humor do usuário; pobres os espelhos dos mais irascíveis. Não que eu seja lá uma pessoa irascível, sou até bastante calmo, mas foi exatamente num momento de descarga de ira que esse espelho quebrou-se, em que a portinhola foi fechada como se pesasse lá uns cinqüenta quilos, com uma violência totalmente desnecessária. Foi mesmo uma descarga violenta de raiva, coisa que podemos muito bem passar sem, daquelas que depois de feitas nos causam um desgosto terrível pelo arrependimento. E então, está certo, eu confesso e assumo de peito aberto, foi de raiva que quebrei o pobre e velho espelho.
Após a quebra do espelho deixei de falar com o meu reflexo, nem nunca mais o olhei de forma diferente da usual. Não deixei de ter reflexo, nem passei a encará-lo como simples representação do algo refletido, só nunca mais me importei com isso. Ainda haviam milhares de espelhos no mundo, e, de fato, após alguns meses de aperto financeiro, pude enfim trocar aquele que quebrara de forma tão estúpida, e podia muito bem ter continuado meus solilóquios acompanhado de meu reflexo. Talvez seja o fato de ter perdido meu espelho mais comum, mais rotineiro, não sei. Pode ser que deixei mesmo de falar com o reflexo por achar isso coisa de criança. Mas o que mais me incomoda hoje é uma idéia que insiste em perpassar pelo meu pensamento: talvez tenha quebrado o espelho por estar de saco cheio de falar com meu reflexo.

domingo, janeiro 14, 2007

Sem título

"O barato é 'loco'
O processo é lento
O sistema é bruto
Minha mãe é santa.

E a realidade....ah!
é gelatinosa"



("Filosofia Urbana" - Velho Deitado)

sábado, janeiro 13, 2007

Porque preciso também ser triste

Existe na tristeza
algo do reflexo e do espelho.
Esse estado traz uma influência
que permite colocar para tigres e traças
Destes todos pesares da consciência
Tristeza e contentamento das origens

Então ser triste para refletir
e ser reflexo,
de qualquer coisa,
de qualquer nada que aparenta ser
alguma coisa.

Mas na conveniência
tristeza não é sofrimento,
nem contentamento felicidade
Mas vem de todos esses recalques
o que sentimos de ser vivo

Porque eu deveria ser triste?

Porque eu deveria ser triste? Porque eu sou uma traça? Porque eu sou um tigre? Porque não tenho o que ou quem eu quero? Porque vivi e vivo tempos difíceis?
Porque eu deveria me lamentar? Porque assim as palavras são mais tocantes? Porque muitos consideram o mundo perdido? Porque não tenho amigos?
Porque eu deveria esperar mais dos outros? Porque eu dou tudo de mim? Porque eu confio neles? Porque eles deveriam ver o que está claro?
Porque eu não posso ser feliz? Porque eu coloquei a felicidade onde não posso alcançar? Porque o que eu alcanço não traz a felicidade?

Não sou triste, não sou uma traça, não sou um tigre, tenho o que e quem eu quero, vivo bons tempos. Não vou me lamentar, palavras felizes também podem tocar, não considero o mundo perdido, tenho amigos. Não esperos mais dos outros, não dou tudo de mim, confio em mim, nada está claro. Sou feliz, a felicidade sempre está ao meu alcance e tudo o que tenho me trouxe ela.
(mesmo que assim não fosse, ainda seria feliz, pois a tristeza é um estado e a felicidade um modo)

A felicidade está sempre onde a colocamos, mas muitas vezes a colocamos onde não estamos!

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Para se ler ainda jovem pt.2

Sei que amar
é mais simples que parece.
Dizem que é pra sempre:
não é para tanto.
Mas, tampouco,
é o instante,
(um momento, por favor).
Não deve ser coisa que dê medo;
é um medo
ao contrário,
como um medo de nada
sem que o nada esteja presente.
É medo porque é um tremor.
É esta a definição!
O amor sensível, este sim existe
não aquele amor sublime
de poema, ou de filme.

É, no fundo,
um tremor lá no estômago
e não no coração.

terça-feira, janeiro 09, 2007

Para se ler ainda jovem

Quando eu tiver meus sessenta e cinco anos
E, por tua culpa, for um velho rabugento e mal-humorado
Quero te encontrar ao acaso pelas ruas
Com o corpo coberto de mágoas e futuros-do-pretérito
E dizer-te o seguinte:

“Agora vês?
Então, da próxima vez que eu te falar
Que o amanhã não existe
E olhar-te com a feição de um cachorro molhado
Cale a minha boca e beije-me com amor
Assim entre nós não haverão apenas arrependimentos!
Mas agora, a vida que deveria ter sido
Já foi há muito.”

Aposto que tu me olharias chateada
Eu faria uns resmungos sobre o clima quente
E cada um seguiria o fim de seu caminho.

segunda-feira, janeiro 08, 2007

E agora, tanto faz estar aqui, esperando, a olhar a colina.
É tão bela.

O coração grita - MENTIRA!

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.
(Eduardo Alves da Costa, em No Caminho, com Maiakovski)

sábado, janeiro 06, 2007

Zero

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos de chegar
quase todos
a ratos
Sim
a ratos

("O poema pouco original do medo", Alexandre O'Neill)

sexta-feira, janeiro 05, 2007

Pan 2007, no Rio - será que isso dá certo?


Ano passado foi a Copa. Na Alemanha. E mesmo assim teve seu "stress".
Fico a imaginar como será esse Pan do Brasil.
É o Rio de Janeiro, Fevereiro e Março. Mas o Pan é em julho.
Faltam 189 dias, conforme página oficial do evento.
Coisa chique mesmo. Precisa de infra-estrutura. Os olhos do mundo estarão voltados para as terras Sur Americanas.
Mas não era só isso que eu imaginava. Há muitos dias que venho pensando no que findará este projeto.
Quantas pessoas estão envolvidas nisso. Pessoas organizando, outras pondo a "mão-na-massa" e os atletas se esforçando para darem o melhor de si e serem lembrados por alguns meses como heróis nacionais.
Ainda assim, isso foi só o começo do que eu imaginei. No Rio há uma violência tremenda. Morros dominados pelo tráfico. Bala perdida. Chacinas. E agora ataques do CV. E a pergunta que fica é: "Pan 2007, no Rio, será que isso dá certo?".
Lembrando que o Brasil vai concorrer a sede da Copa de 2014. E a Fifa já confirmou que vai ser na América do Sul. A Argentina já está fora.

CONHEÇA A HISTÓRIA DA CAMISINHA!

A história é muito mais antiga do que se pensa – afinal, desde muito cedo, homens e mulheres descobriram que a atividade sexual trazia alguns inconvenientes, como a gravidez indesejada e as doenças sexualmente transmissíveis.
Há mais de 3.000 anos, a arte egípcia já mostrava figura de homens com algum tipo de envoltório no pênis. Há quem fale de peles de animais, mas não se sabe de que material eram feitos. Na Europa, as primeiras evidências do uso da camisinha são pinturas nas cavernas de Combarelles, na França.
A origem histórica da camisinha foi em 1.500, quando o anatomista italiano Gabrielle Fallopius inventou uma espécie de "saco de linho" para proteger seus pacientes da sífilis. Como o método inventado por ele funcionou, e as pessoas perceberam a possibilidade de usar a camisinha para evitar a gravidez, seu uso se popularizou e cresceu muito por volta do ano de 1.700, quando as camisinhas passaram a ser feitas de um material mais fino: membranas de intestino de carneiro.
Mas foi em 1843, quando o revolucionário processo de vulcanização da borracha, inventado por Hancock e Goodyear, possibilitou a produção em massa de preservativos, que eles se tornaram realmente mais populares e baratos. Até o legendário amante Casanova foi adepto dessas camisinhas. Em 1930, o látex líquido substituiu a borracha, e ainda é o material mais usado na fabricação de camisinhas.
Nos anos 90, as novas tecnologias possibilitaram a produção de camisinhas cada vez mais sofisticadas, como as de poliuretano, mais finas e sensíveis.

E dizem que é pecado usar...

Colaborou para este post Kleiton do Amaral Rodrigues

quinta-feira, janeiro 04, 2007

O tempo das gavetas

O tempo cresce e sobra se falta preenchimento. Se uma traça pega a cair em palavra, não há papel que basta para correr. Sóbria como quem se prepara para o descanso, uma traça coloca na comparação uma simples gaveta, que recebe importância pela mesma causa interna do tempo, o preenchimento. No caso de traça, dentro ficam os papéis avulsos, picados, órfãos de autoria, esfarelando a sobra do tempo. Se ao menos as traças fossem menos traiçoeiras e mais tristes como os tigres, o vazio não seria algo muito sério, porque no final, quando a sobra já estiver no esgotamento, era só propor Lamartine em uma pedra simples, sobre um gramado curto e verde breve. Talvez para dissimular tristeza. “Deus, amor e poesia são as únicas palavras que gostaria de escrever na minha lápide, se eu merecer uma lápide”.

quarta-feira, janeiro 03, 2007

novo ano

Pensei que fosse começar o ano de cabelo curto, barba feita e unhas cortadas. Qual o quê! Quanto mais tempo se tem, menos se usa. Cheguei ao fim das festas no mesmo estado de antes, só que barba cabelo e unha são coisas que não param de crescer, pelo que eu sei cabelo e unha crescem até em morto, não sei bem barba, mas a minha, mesmo vivo, não cresce lá muita coisa. E assim surgi no novo ano, de barba, cabelo desgrenhado, as unhas eu cortei que aí já é mesmo vergonhoso, os olhos fundos de quem não se acostumou à cama, a preguiça com que se sai das férias... É, ano é coisa que nem acaba e logo já vem outro atrás, na seqüência mesmo, nem bem nos despedimos do velho e já tem um novo nos obrigando a escrever as datas diferente, a começar tudo de novo, não deixa nem mesmo mudar a estação.

segunda-feira, janeiro 01, 2007

Das construções

Uma parede é a mesma parede
Feito o concreto,

sobem os tijolos
A poesia está em outra arquitetura
Pinte a linha
Até com a mesma tinta,
Seo Poeta!
Mas veja que debaixo

Está a sereníssima cadeira...

Lógica

2007 está para 2006 assim como 1° de janeiro está para 31 de dezembro.
Nenhum salto tão grande que não possa ser desafiado.
Nenhuma mudança tão drástica a não ser pelo último dígito do calendário.