terça-feira, janeiro 16, 2007

monólogos reflexivos

[Falavam de reflexo. Lembrei do relato de um velho amigo, que segue:]

Um dia dei pra falar com o meu reflexo. Não era assim, caso de louco, apenas andava falando com meu reflexo, não falava com o espelho como diriam uns, nem sozinho, como é comum a outros, e tantos outros, diga-se de passagem, mas falava, tão somente, com o meu reflexo. Fora assim, meio que sem querer, um dia virei, olhei meio ressabiado praquele indivíduo refletido no espelho e me escapou um que foi. Claro que não tive resposta, nem é esse o ponto x da questão, é que, convenhamos, é um grande passo manter assim, nem um monólogo nem um diálogo, falar com o próprio reflexo, a própria imagem refletida por uma superfície brilhante e polida.
[...]
Mas, voltando ao que dizia, vale lembrar também que o falatório é mesmo comum mas não condiz em nada com a realidade, e, comentado ou não, falava mesmo com o reflexo, afinal, se me importasse com comentários não era com ele que eu falaria, mas com alguma pessoa qualquer, que, na ânsia de se comprovar viva, desataria a falar, como todos, disputando espaço com seu interlocutor numa conversa. É que é meio que natural, por não ser em si nem o mundo e nem os outros, mas tão somente a si mesmo, colocar todo o universo trabalhando em função disso, transformando-se no centro de tudo e todos, afinal, o mundo só se alcança pelos sentidos, já o eu por sentimento, primeiramente, e então uma quase plena consciência. Essas coisas, vim a pensar quando falava com o reflexo, que reflexo é engraçado, é só um fenômeno físico, coisa de reflexão e refração da luz, que por si, já é refletida e ou refratada pelo objeto que se reflete no espelho, imagina só o caminho que a luz faz, anos e anos viajando no espaço para então bater na atmosfera e ser refratada, bater no meu rosto e ser refletida até o espelho, quando é refletida de volta aos meus olhos, que a convertem em sinal quimio-elétrico, ou o que quer que seja, a ser transferido de ponta cabeças ao meu cérebro, que, então, a inverte, ainda é só uma imagem, e imagem não é nada, toca ao cérebro intelectualizar aquilo, de forma a eu compreender, por abstração, que aquilo é o meu reflexo, e se for um pouco mais longe, chegar, como já fiz antes, até ao sol, que, abstraído de sua beleza, só serve mesmo pra nos dar luz e calor.
O reflexo é coisa engraçada mesmo, rapaz, porque não é nada, nem existir não existe, mas, por inteligentes que somos, ora pode representar o objeto refletido, ora o espelho, ora a luz, oras, pode representar o que quer que queiramos. Mas responder não responde não, ainda bem, só fica abrindo a boca enquanto se fala, às vezes parece até ser de propósito, como quem fica a arremedar os outros por troça, mas só parece, porque sem ser um ser não pode aquilo ter vontade, não é nem ser nem nada, é só um reflexo, e por isso pode ser o que quisermos.
O meu reflexo, por si só não era nada, como cabe a todo bom reflexo que se preze, mas não deixava de ser, para mim, com a qualidade que eu lhe dava de ouvinte, uma espécie abstrata de companhia. Eu o tornara quase um ser, não chegava ao ponto de torná-lo efetivamente um ser, não o transformara num amigo imaginário, já não podia eu ser uma criança inventiva, tampouco sofria de esquizofrenia, enfim, eu o tornara um reflexo ouvinte. Na verdade, melhor dizendo, o reflexo não mudara em nada, continuava com sua característica de ser luz, ou seja, de não ser, e ora representar eu mesmo, ora representar o espelho, ora um ouvinte, enfim, o que realmente mudara fora mesmo eu, que, simplesmente, me tornara um homem que falava com o reflexo. O próprio, que, como já disse, não sou homem de falar com o reflexo dos outros. Pois bem, supõe-se que não seja à toa que alguém, de repente, se atine a falar com o reflexo, com tanta gente aí em volta. Mas é que, como já disse, conversar e falar tem diferenças sutis, é coisa meio besta a diferença, é que conversamos fingindo que nos interessamos pelo assunto da outra pessoa, quando, no máximo, nos interessamos pelo interlocutor em si. O falar com o reflexo em muito difere do falar com si, desde que não se considere o reflexo como representação de si mesmo, isto é, quando se considera o reflexo como tal, como um não-ser, e ainda assim se fala com ele, esse mesmo ato de falar com uma imagem, não enquanto representação mas tão somente como luz refletida, difere do ato de fala consigo na medida em que não serve nem para demonstração de si, quanto para auto-afirmação do discurso; em suma, provavelmente serve apenas, e tão somente, para se ouvir a própria voz, dizendo qualquer coisa que não tenha efeito nenhum. A partir do momento em que se atenta às palavras, o ato torna-se de falar-se, de discursar com e para si.
Pois bem, para não me perder em conjecturas baratas, no prazer auto-afirmativo do discurso, e depois não mais conseguir alcançar o fio da meada, voltemos à narrativa. Dizia eu que em dado momento de minha vida dei pra falar com meu reflexo. E isso ia muito bem, já se vê que não vai mais, usando esse verbo em tal conjugação, ao invés de vai, disse que ia, quando na verdade, dado o tempo que durou tal atividade e visto que, como já se notou, não é mais praticada no presente, o mais indicado à utilização seria foi, pois bem, foi então, e isso foi muito bem, soa esquisito, mas vamos por esse caminho: isso tudo foi muito bem por um bom tempo, até que em dado momento quebrou-se o espelho do banheiro contíguo ao humilde quarto em que eu morava. Dizer quebrou-se é força de expressão, pois, mesmo que de vidro, que é frágil por ser ductilíssimo, um espelho não é coisa que sofre lá muitos baques, é coisa bem construída, e mesmo que frágil, bastante forte, diga-se de passagem, e, assim, pode durar muitos e muitos anos pendurado numa parede qualquer, sem que ninguém lho mexa por má intenção ou mesmo por desproposital estabanamento. Quebrou-se o espelho porque fazia as vezes de porta a um armarinho de banheiro, desses armarinhos em que se põe escova e pasta-de-dentes, pentes, escovas, fios-dentais, cotonetes, barbeadores, cremes-de-barbear, loções pós-barba, cremes pra pele, perfumes e até às vezes alguns remédios mais comumente utilizados, entre outros objetos de higiene pessoal e produtos cosméticos. E, por fazer as vezes de porta, sabe-se bem como são as portas, era algo demasiadamente móvel, e pior, com uma mobilidade extremamente suscetível, e por que não dizer dependente, do humor do usuário; pobres os espelhos dos mais irascíveis. Não que eu seja lá uma pessoa irascível, sou até bastante calmo, mas foi exatamente num momento de descarga de ira que esse espelho quebrou-se, em que a portinhola foi fechada como se pesasse lá uns cinqüenta quilos, com uma violência totalmente desnecessária. Foi mesmo uma descarga violenta de raiva, coisa que podemos muito bem passar sem, daquelas que depois de feitas nos causam um desgosto terrível pelo arrependimento. E então, está certo, eu confesso e assumo de peito aberto, foi de raiva que quebrei o pobre e velho espelho.
Após a quebra do espelho deixei de falar com o meu reflexo, nem nunca mais o olhei de forma diferente da usual. Não deixei de ter reflexo, nem passei a encará-lo como simples representação do algo refletido, só nunca mais me importei com isso. Ainda haviam milhares de espelhos no mundo, e, de fato, após alguns meses de aperto financeiro, pude enfim trocar aquele que quebrara de forma tão estúpida, e podia muito bem ter continuado meus solilóquios acompanhado de meu reflexo. Talvez seja o fato de ter perdido meu espelho mais comum, mais rotineiro, não sei. Pode ser que deixei mesmo de falar com o reflexo por achar isso coisa de criança. Mas o que mais me incomoda hoje é uma idéia que insiste em perpassar pelo meu pensamento: talvez tenha quebrado o espelho por estar de saco cheio de falar com meu reflexo.

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